ONDE A ALMA SE ESCONDE


Nunca entendi direito por que ela fazia aquilo: nos dias de sol, as velas derretiam e apagavam; nos de chuva, molhavam e apagavam. Mas ela, tenazmente, continuava. Muito era pela tradição religiosa da nossa família, só que, mesmo assim, era tudo muito enigmático para uma garotinha de apenas cinco anos.

Esse gesto de minha avó, essa tradição que ela fazia questão de manter e de me ensinar, transformou o Dia das Almas num aterrorizante e, ao mesmo tempo, atraente mistério para mim. Aterrorizante porque as almas eram de gente morta e ponto; atraente porque me dava aquele friozinho na barriga, como se somente eu soubesse "daquilo" e já fosse "grande" o suficiente para participar de um ritual desses. Bem lá no fundo, eu sabia que ela confiava em mim. Mas o incômodo, esse sempre permaneceu, embora me reconfortasse a ideia de que as almas não poderiam entrar na minha casa e me assustar, uma vez que eu não acendesse velas para elas lá dentro.

Alma, para mim, era sinônimo de morte. A gente morria e virava alma. Gente ruim virava alma penada. Gente boa virava alma abençoada. Com o passar dos anos, comecei a me interessar pelas características formativas da alma, por aquilo que torna uma alma, alma.

Existe um certo consenso quando nos referimos ao conceito do que possa vir a ser a alma:

- uma coisa assim um tanto leve e etérea, meio enevoada, de uma certa transparência e translúcida;
- almas flutuam ao invés de voarem, traspassando objetos e obstáculos;
- almas sussuram ao invés de falarem, expressando enigmáticos olhares e sorrisos;
- almas se desintegram e se escondem no vazio;
- almas só se revelam por vontade própria e são difíceis de se encontrar.

Foi, então, que surgiu a grande pergunta: onde será que a alma se esconde?

Descobri, finalmente, que não era no quintal de casa. Seria dentro, fora, abaixo, acima, ao redor? Em todos esses lugares simultaneamente? Na primeira, na segunda, na terceira dimensão? Ou nas outras dimensões que ainda não podemos vislumbrar fisicamente, mas que podem existir? Será que, para conhecermos a alma, devemos nos lançar ao espaço ou mergulhar nas profundezas do oceano? Subir ou descer? Ou descer e subir?

Nem preciso dizer que não cheguei muito longe... As respostas sempre vieram pela metade. Até que um belo dia, sem querer querendo, como diz o personagem Chaves, descobri o Yoga. Não, não é verdade. Em verdade, eu não descobri o Yoga: o Yoga é que me descobriu!

Em uma dessas tardes quaisquer, eu apenas liguei a televisão e vi um senhor falando mansinho com uma senhora, que estava fazendo uns movimentos interessantes com o corpo: umas posturas, como ele explicou. Resolvi imitar, gostei e passei a fazer todos os dias, no meu quarto, para um certo desespero de minha mãe:

- Você sabe quanto tempo faz que você está aí, com essas pernas atrás da cabeça (leia-se: halasana)??? Você vai ficar sem ar!!!

Três anos depois, passando por uma rua, vi uma placa escrito YOGA. Simplesmente entrei, me matriculei e comecei oficialmente a praticar.

Nove anos mais tarde, quando minha avó morreu, e eu já havia decidido parar de fazer perguntas difíceis, me peguei no quintal da casa da minha mãe, acendendo uma vela especialmente para ela, do jeito que ela tinha me ensinado. E foi nesse exato momento que eu descobri, e pela primeira vez senti, que alma é sinônimo de vida e que minha avó não tinha que ficar em outro lugar qualquer que não fosse apenas nas lembranças do meu coração.

Nesse dia, eu descobri o esconderijo da alma.

(Uma Alma Trazida para o Céu, obra de William-Adolphe Bouguereau.)